sábado, 24 de dezembro de 2016

Modelagem e self-fashioning


Publicado pela primeira vez em 1980, o estudo de Stephen Greenblatt, Renaissance Self-Fashioning: From more to Shakespeare, foi uma grande contribuição para a concepção acerca do indivíduo Renascentista. Greenblatt, em seu estudo, se posiciona contra teorias que negam qualquer relação entre obra e vida social e também que esta última é livre de interpretação. Primeiramente ele trata a questão da autonomia na modelagem do indivíduo (em sua self-fashioning, como coloca) como uma falsa sensação de liberdade. Não há, propriamente, autonomia: ela é, na verdade, controlada por poderes maiores de influência como a família, o Estado e a Igreja. O poder de obrigar o indivíduo a modelar-se em certos padrões é uma questão de ter poder sobre a identidade, seja a própria ou a do outro.
O século XVI, no que diz respeito à identidade do indivíduo, é marcado por uma crescente autoconsciência da formação da identidade como um processo manipulável e artificioso. Há, no início dos tempos, uma mudança nas estruturas intelectuais, sociais, psicológicas e estéticas que governam a produção de identidades[1]. É também no século XVI que fashion passa a ser uma palavra de grande circulação e começa a ser usada como um modo de formar do indivíduo. Essa formação é entendida, como afirma Greenblatt, tanto como uma imposição física sobre uma pessoa quanto uma delineação menos aparente, encontrada em um determinado modo de pensar e comportar-se.
A essa última concepção de fashion o modelo mais recorrente é encontrado na figura de Cristo. Assim observamos quando Tyndale, na tradução de uma epístola aos Romanos, associa fashion à figura de Jesus ao dizer: “he fashioned unto the shape of his son”, ou o Arcebispo Sandys, na sua tradução de Geneva de 1557 do Novo Testamento, de modo parecido declara: “[he] was disfigured to fashion us, he died for our life”.


O texto de Thomas Greene, A Flexibilidade Do Self Na Literatura Do Renascimento, tem como objetivo falar da liberdade e autodeterminação humanas na literatura do Renascimento. Greene nos mostra que as manifestações artísticas e intelectuais do período renascentista apresentavam uma visão sobre o homem muito diferente daquela dos períodos anteriores. Antes, o homem estava fadado a ocupar uma única posição na sociedade. Se servo, sempre servo; se nobre, sempre nobre.
É verdade que desde antes do Renascimento, a possibilidade de subverter essa determinação social já existia, mesmo que bastante timidamente. Porém, é com o Renascimento que a possibilidade de o homem se autodeterminar ganha força. A citação de Pico Della Mirandola (um filósofo humanista do Renascimento Italiano), presente na obra Discurso Sobre a Dignidade do Homem, é pertinente:

[...] nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual o modelador e escultor da própria imagem, segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar. Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderás, ao invés, por livre escolha de tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos.

É, também, importante ressaltar que a doutrina da indeterminação da natureza do homem choca-se com uma outra doutrina: a da defesa da inalterabilidade da natureza humana. Esta última é comum a Aristóteles e os Escolásticos.
Para explicar-nos como se dá essa nova concepção da performance humana na sociedade, Greene traz o conceito de “Flexibilidade”. “Flexibilidade” está, basicamente, ligado à ideia de ser capaz de “esculpir” sua “própria imagem”, a possibilidade de reconfigurar seu próprio eu.

[1] GREENBLATT, S. Renaissance self-fashioning: from more to Shakespeare. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1980.

GREENE, T. A flexibilidade do self na literatura do Renascimento. In: Histórias & Perspectivas. N. 32. Uberlândia: EDUFU, 2005.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Prudência e sinceridade

As questões que giram em torno da consciência do indivíduo são recorrentes em discussões atuais. Afinal, como podemos definir a palavra “indivíduo”? Segundo o dicionário Houaiss, o indivíduo pode ser pensado como alguém em relação a uma coletividade. A subjetividade, por sua vez, é definida como algo do sujeito, pessoal; que não é concreto, exato ou objetivo. Pensando nessas duas definições, reflexões podem ser levantadas: como essas questões permeiam a consciência do indivíduo? Qual o lugar da subjetividade dentro da coletividade, pensando na noção do eu?
O caráter permanente desse questionamento pode ser visto como sendo universal. Entretanto, com diferentes entendimentos de indivíduos em diferentes sociedades, tais questionamentos partem de premissas diferentes, resultando em estudos diferentes. Além disso, podemos inferir que esse caráter seja também atemporal, nos permitindo pensar sobre eles por meio de uma perspectiva diacrônica, com uma reflexão que vai desde as primeiras análises sobre o indivíduo e a subjetividade. Para melhor entendermos a historicização da noção de indivíduo, conduzimos a reflexão ao Renascimento, período no qual categorias morais foram repensadas. Focamos, então, em John Martin e em seu ensaio “Inventing Sincerity, Refashioning Prudence: The Discovery of the Individual in Renaissance Europe”. Em seu texto, Martin visa destacar a descoberta do indivíduo, e para tal examina os conceitos morais de sinceridade e prudência.
O ensaio visa ressaltar a importância da descoberta do indivíduo não apenas pela perspectiva da alta cultura – arte, música, literatura e história intelectual –, que era o foco de Burckhardt, mas também pelo entendimento da história social e política. Para observar a Renaissance self-fashioning, Martin faz uma análise que destaca a formação histórica dos Reinassances selves, com o objetivo de redefinir as categorias morais referentes à sinceridade e à prudência. Martin destaca que é importante analisar a mudança das noções medievais para as noções renascentistas com relação do inner self para entender o que se tornou a consciência do indivíduo renascentista e o novo sentido da noção de eu. Dois conceitos são analisados: o Renaissance fashioning da virtude da prudência e a emergência do ideal de sinceridade.
 Em seu ensaio, Martin discute que prudência, do latim providere (“prever”), segundo Aristóteles, é a razão prática que guia a escolha no processo ético de tomada de decisões. Na Idade Média, era vista como sabedoria cristã. De acordo com Tomás de Aquino, a prudência é um princípio de ordem, considerada a virtude mais necessária para a vida humana. Não importa apenas o que o homem faz, mas também como ele faz: deve ser uma escolha certa, e não um impulso. No início do século XIX, Maquiavel rompe a ligação entre os ideais de prudência e ética. A ênfase na deliberação e a separação entre prudência e ética coloca novo foco na subjetividade humana.
A sinceridade, por sua vez, possui muitos significados. Antes do Renascimento, era vista como algo puro ou inalterado. Tornou-se uma categoria moral a partir do século XIX, a partir de um ímpeto moral crescente para tornar sentimentos e convicções conhecidas. A sinceridade passou a ser descrita como a relação entre a percepção dos homens e mulheres de seus internal selves (pensamentos, sentimentos e convicções) e o mundo mais amplo.
Ao revisitar a discussão de sinceridade quanto na discussão de prudência, Martin analisa um novo entendimento do ser humano. Destacam-se autores como Lutero e Michel de Montaigne. Para exemplificar, podemos mencionar uma consideração de Montaigne sobre prudência feita em seu livro Ensaios, em que há um conflito entre a sinceridade do eu, o que o sujeito gostaria de fazer; e a prudência, que de algum modo impede a projeção completa de sua subjetividade perante a sociedade:
“A própria essência da minha forma é a comunicação, é a manifestação: sou todo extrovertido e em evidência, nascido para a companhia e a amizade. A solidão que amo e que prego é, principalmente, trazer para mim minhas afeições e meus pensamentos: restringir e estreitar, não meus passos, mas meus desejos e minhas preocupações, recusando a solicitude externa e fugindo mortalmente da servidão e da obrigação, e não tanto da multidão dos homens como da multidão dos negócios. Para falar a verdade, meu isolamento mais me estende e me expande para fora: com mais gosto me atiro nos negócios do Estado e no universo quando estou sozinho. No Louvre e na multidão me fecho e me contraio dentro de minha pele. A multidão impele-me a entrar em mim. E jamais converso comigo mesmo mais loucamente, mais licenciosa e privadamente que nos lugares de respeito e prudência cerimoniosa. Nossas loucuras não me fazem rir, mas sim nossas sapiências. Meu temperamento não me torna inimigo da agitação das cortes:aí passei parte da vida, e fui feito para portar-me alegremente com os grandes grupos, contanto que seja por intervalos, e na minha hora. Mas esse frouxo julgamento de que falo força-me à solidão.” (p. 255)[1]
A consciência do indivíduo foi, em grande escala, o resultado de mudanças fundamentais nas visões de ética dos humanistas renascentistas e os reformistas protestantes. A partir de um fashioning de identidades religiosas, pessoais e sociais, era possível, segundo Lutero, delinear duas virtudes de sinceridade e prudência distintas no discurso renascentista, com negociações no dia-a-dia sobre qual papel deveria ser exercido.
Martin discute que o indivíduo passou a projetar uma representação fiel da sua subjetividade, levando em consideração seus sentimentos, preocupações e crenças. Ao mesmo tempo, a representação do indivíduo diante da corte e da sociedade representava também o inner self, uma vez que homens e mulheres precisavam negociar seus papéis sociais. Portanto, a noção de indivíduo torna-se única e complexa. Montaigne argumentou ainda em favor de uma coexistência dessas virtudes, mas se teria assim uma impossibilidade de um discurso sincero, pois havia um protocolo a ser seguido que impediria uma projeção completa da subjetividade, conforme o exemplo acima. É importante notar que, mesmo sendo uma reflexão sobre um período renascentista, as questões são bastante atuais. Ao pensarmos na sociedade atual, acreditamos que seja de extrema importância o levantamento da discussão da sinceridade e da prudência.
Podemos perceber e discutir os conceitos de sinceridade e prudência em My Mind to Me a Kingdom Is, de Sir Edward Dyer:
MY mind to me a kingdom is;
  Such present joys therein I find,
That it excels all other bliss
  That earth affords or grows by kind:
Though much I want that most would have,
Yet still my mind forbids to crave.

No princely pomp, no wealthy store,
  No force to win the victory,
No wily wit to salve a sore,
  No shape to feed a loving eye;
To none of these I yield as thrall;
For why? my mind doth serve for all.

I see how plenty surfeits oft,
  And hasty climbers soon do fall;
I see that those which are aloft
  Mishap doth threaten most of all:
They get with toil, they keep with fear:
Such cares my mind could never bear.

Content I live, this is my stay;
  I seek no more than may suffice;
I press to bear no haughty sway;
  Look, what I lack my mind supplies.
Lo, thus I triumph like a king,
Content with that my mind doth bring.

Some have too much, yet still do crave;
  I little have, and seek no more.
They are but poor, though much they have,
  And I am rich with little store;
They poor, I rich; they beg, I give;
They lack, I leave; they pine, I live.

I laugh not at another’s loss,
  I grudge not at another’s gain;
No worldly waves my mind can toss;
  My state at one doth still remain:
I fear no foe, I fawn no friend;
I loathe not life, nor dread my end.

Some weigh their pleasure by their lust,
  Their wisdom by their rage of will;
Their treasure is their only trust,
  A cloakèd craft their store of skill;
But all the pleasure that I find
Is to maintain a quiet mind.

My wealth is health and perfect ease,
  My conscience clear my chief defence;
I neither seek by bribes to please,
  Nor by deceit to breed offence:
Thus do I live; thus will I die;
Would all did so as well as I!


Glossário:
Bliss: bem-aventurança                                 Thrall: prisioneiro
Surfeit: excesso                                              Hasty: apressado
Mishap contratempo                                      Toil: trabalho
Haughty: arrogante

Ao longo de todo o poema, percebemos uma distinção entre tais questões. Por um lado, encontramos a voz do falante, que percorre todo o poema afirmando que ser consciente de si mesmo é o suficiente para ele. O falante se vê rico em conhecimento, e só busca o mesmo. É em si mesmo que o falante encontra felicidade, como podemos perceber em “My mind to me a kingdom is;/ Such presente joys therein I find,/ That it excels all ohter bliss” e em “Content I live, this is my stay”. Logo em seguida, temos “ I seek no more than may suffice”, em que há uma forte tensão entre a sinceridade e a prudência. De acordo com o falante, qual seria o propósito de uma busca a felicidade no mundo exterior se já a encontra dentro de si? Portanto, temos uma impossibilidade da prudência em prol de uma sinceridade completa.
 Por outro lado, vemos os outros membros da sociedade sendo representados como pessoas que prezam luxúria e riqueza material. Tais riquezas, portanto, os colocariam como membros respeitosos na sociedade. Entretanto, o falante os aponta como membros pobres, já que não buscam uma clareza de si mesmos. É possível perceber tal diferença entre os indivíduos em:
“Some have too much, yet still do crave;
  I little have, and seek no more.
They are but poor, though much they have,
  And I am rich with little store;
They poor, I rich; they beg, I give;
They lack, I leave; they pine, I live.”

O falante, ao se referir aos outros indivíduos da sociedade, os enxerga como indivíduos não completos, uma vez que buscam uma ascensão social. Portanto percebemos, segundo o poema, que a ganância para se encaixar nos moldes da sociedade bloqueia a possibilidade de uma sinceridade completa. A tensão entre prudência e sinceridade, dessa forma, permeia durante todo o poema.
Mesmo com todo o embate dos conceitos de sinceridade e prudência ao longo do poema, também podemos nos perguntar se o falante se apresenta como um indivíduo único mesmo. Apesar de se dizer consciente de si mesmo, o falante não vai além de tal afirmação, e pode acabar seguindo uma linha de senso comum. Se assim o faz, poderia estar se afastando mais da sinceridade do que percebemos em uma primeira leitura. Todo esse questionamento, dessa forma, nos indica que o conceito de indivíduo não é resolvido.
Os ideais de prudência e sinceridade e a tensão entre eles tornou possível a percepção do ser humano como um indivíduo complexo e auto-consciente. Tal percepção traz, dentre outros, os questionamentos levantados no início: como podemos enxergar um indivíduo na sociedade atual? Com a tecnologia disponível e o conhecimento que essa traz na sociedade do século XXI, estaríamos nós cientes da nossa própria consciência? Se sim, nos encontramos a caminho de um maior encontro com a sinceridade. Mas o que nos afasta de tal clareza? Nesse caso, nos encaminhamos para uma construção de identidade dentro do conceito de prudência. Percebemos, desta maneira, que essas são perguntas atemporais e sempre atuais. Podemos enxergar tal dilema também através das construções sociais. Como podemos ter uma noção de indivíduo se estamos sempre nos colocando dentro de categorias sociais? Ao sermos sinceros, seremos aceitos em sociedade? Como lidar com as virtudes e os sentimentos? É preciso discutir, portanto, se existe a noção do indivíduo dentro da sociedade no mundo atual, uma vez que essa noção é condição para a sinceridade, que, por sua vez, é refreada pela prudência.





[1] Exemplo retirado da tradução brasileira feita por Rosa Freire D’Aguiar: “Os Ensaios – Uma seleção”, disponível para download em http://pensamentosnomadas.com/livros-de-michel-de-montaigne-em-49385

Automodelagem e flexibilidade do indivíduo

Publicado pela primeira vez em 1980, o estudo de Stephen Greenblatt, Renaissance Self-Fashioning: From more to Shakespeare, foi uma grande contribuição para a concepção acerca do indivíduo renascentista. Dividido em seis capítulos [1], Greenblatt, em seu estudo, se posiciona contra teorias que negam a relação entre obra e vida social e também que esta última é livre de interpretação, se utilizando de exemplos como More, Wyatt, Spenser e Marlowe.
Primeiramente, o autor trata a questão da autonomia na automodelagem do indivíduo (em sua self-fashioning, como coloca) como uma falsa sensação de liberdade. Diferentemente de como Burckhardt afirma que a individualidade é inerente ao homem e livre de fatores externos, Greenblatt diz que não há, propriamente, tal autonomia: ela é, na verdade, controlada por poderes maiores de influência, como a soberania do Estado e a Igreja, principalmente considerando o período de Reforma e Contrarreforma. O poder de obrigar o indivíduo a modelar-se em certos padrões é uma questão de ter poder sobre a identidade, seja a própria ou a do outro.
O século XVI, no que diz respeito à identidade do indivíduo, é marcado por uma crescente autoconsciência na formação da identidade como um processo manipulável e artificioso. Há, no início dos tempos, uma mudança nas estruturas intelectuais, sociais, psicológicas e estéticas que governam a produção de identidades [2], ocasionando uma crise do sujeito como condição individual.
A essa consciência individual soma-se a consciência da palavra, uma vez que a língua é uma construção coletiva e, logo, obra literária e vida social são influências mútuas (Greenblatt, p. 5); há também a consciência da arte, já que, como uma forma de manifestação da atividade humana, a arte também se relaciona à vida social. O livro de Baldassare Castiglione, The book of the courtier (1528), exemplifica como, através das palavras de um escritor, surgem certos padrões a serem seguidos, padrões “apropriados” para o cortesão ideal, “que, sob o [...] ponto de vista [de Castiglione], é a forma de cortesia mais apropriada para um cavalheiro que vive na Corte da princesa, na qual ele terá o conhecimento e habilidade de servi-la em qualquer coisa razoável, ganhando seus favores e o louvor dos outros” (p. 39, tradução própria). A partir do momento em que se descreve um modelo padrão e que ganha recorrência, esse modelo passa a ser aquele que deve ser espelhado, suscitando assim uma forma indireta de imposição da identidade.
Em seu livro, Castiglione narra uma história dentro da Corte, cujos membros resolvem fazer um jogo, que acaba sendo “retratar em palavras um perfeito cortesão, explicando o personagem e as qualidades particulares necessárias a qualquer um que mereça tal título” (p. 51, tradução própria). Os personagens discutem a natureza de um perfeito cortesão, como a sua nobreza, a primeira impressão que ele deve suscitar, seu modo de portar-se, sua beleza e elegância, modo de falar, entre outras coisas.
Robert Dudley, 1st Earl of Leicester, autor desconhecido (datado de aprox. 1575)

É também no século XVI que fashion passa a ser uma palavra de grande circulação e começa a ser usada como um modo de formar o indivíduo. Essa formação é entendida, como afirma Greenblatt, tanto como uma imposição física sobre uma pessoa quanto uma delineação menos aparente, encontrada em um determinado modo de pensar e comportar-se. A pintura acima foi retirada do National Portrait Gallery não só como um exemplo da arte como representação de um indivíduo (no que permanece a pergunta: seria a arte a representação de um indivíduo em sua individualidade? Ou seria ela a representação de um tipo de indivíduo, uma classe, uma sociedade mais do que a um indivíduo em sua particularidade?), mas (relacionando ao The book of the courtier) como a representação de um cortesão, e além do mais, como um exemplo de imposição física.
Se observarmos a pintura, o personagem sendo retratado é um conde, membro da Corte Real – um cortesão. Ele se traja com vestes reais, tem o rosto sóbrio e a postura ereta, com uma das mãos no quadril [3], representando sua elegância em portar-se (também uma forma de imposição) e a outra na espada, que, conforme Castiglione, a certa altura, sinaliza: “a primeira e verdadeira profissão do cortesão deve ser a das armas” (p. 57) e:
Assim como, uma vez que manchada, a reputação da pureza de uma mulher nunca pode ser restaurada, então também a reputação de um cavalheiro de armas é manchada pela covardia ou outro comportamento reprovável, mesmo que apenas uma vez, vai sempre permanecer suja pelos olhos do mundo e coberta com ignomínia. (p. 57, tradução própria)



O texto de Thomas Greene tem como objetivo falar da liberdade e autodeterminação [presentes] na literatura do Renascimento. Através da voz de Pico dela Miranda – um filósofo humanista do Renascimento Italiano –, Greene nos traz um esclarecimento do quão diferentes são os seres humanos das outras criaturas de Deus. Adão é descrito como alguém que pode “esculpir a própria imagem”.
É, também, importante ressaltar que a doutrina da indeterminação da natureza do homem choca-se com a doutrina que defende que natureza humana é inalterável. Esta última doutrina é a comum a Aristóteles e os Escolásticos.

“Flexibilidade” está, basicamente, ligado à ideia de ser capaz de “esculpir” sua “própria imagem”, a possibilidade de reconfigurar seu próprio eu.


[1] À parte os comentários iniciais, notas, introdução e epílogo, o livro é dividido respectivamente nos seguintes capítulos: “At the Table of the Great: More’s Self-Fashioning and Self-Cancellation”, “The Word of God in the Age of Mechanical Reproduction”, “Power, Sexuality, and Inwardness in Wyatt’s Poetry”, “To Fashion a Gentleman: Spenser and the Destruction of the Bower of Bliss”, “Marlowe and the Will to Absolute Play” e “The Improvisation of Power”
[2] GREENBLATT, S. Renaissance self-fashioning: from more to Shakespeare. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1980.
[3] Para mais leituras há a seção do The Metropolitan Museum of Art sobre retratos do período Renascentista e Barroco: http://www.metmuseum.org/toah/hd/port/hd_port.htm

Conceitos de renascimento

Renascimento é o nome geralmente atribuído ao período de transição entre a Idade Média e a Modernidade. Esse termo foi cunhado inicialmente pelos próprios homens letrados do período, e uma das possíveis definições de Renascimento é a encontrada no dicionário Merriam-Webster, que define o Renascimento como “o período na história europeia entre os séculos XIV e XVII quando houve um novo interesse pela ciência e pela arte e literatura antiga, especialmente na Itália.”[i] Tal acepção destaca a Itália, local também conhecido como o “berço do Renascimento”, como centro da produção cultural e científica na época. Entretanto, conforme essa mesma definição ressalta, o Renascimento foi um período decisivo para a história da Europa como um todo. Apesar de a arte renascentista italiana ser a mais icônica e relembrada, o intercâmbio entre as diferentes regiões da Europa era intenso na época, diversos lugares do continente tiveram produções científicas e artísticas no período renascentista.
                Da mesma forma que o Renascimento não ocorreu exclusivamente na Itália, ele não se caracteriza apenas pelo crescente interesse pelas artes e ciências. Existem diversas teorias e acepções que abordam o período a partir de diferentes perspectivas, e por essa razão, esta época também passou a ser chamada alternativamente de “Início da era moderna” (”Early modern period” em inglês). Essa expressão, segundo o professor e pesquisador britânico Terence Cave, é mais abrangente e “cria novas perspectivas de diversos tipos de história intelectual, cultural e social”[ii], indo além da definição do Renascimento que, como já foi mencionado anteriormente, geralmente se resume a questões culturais. Nas palavras de Cave, o termo “Renascimento” representa a “construção de uma cultura elitista ao invés de um fenômeno histórico global”[iii]. Já “Início da era moderna” corresponde a “perspectivas históricas que podem ser consideradas como programaticamente igualitárias”[iv], na medida em que não focam apenas na elite, no cânone, no padrão. Além disso, segundo Cave, o termo “Início da era moderna” estabelece uma conexão do período com a era moderna em si, permitindo estudá-lo do ponto de vista da modernidade. Em suas palavras, “investigar o início da era moderna é inquirir as raízes, as origens ostensivas, da nossa própria ‘modernidade’, e assim submeter as ideologias modernas, através de um laço histórico, a uma crítica radical.”[v]
Além da associação do período com a Itália e com as artes, existiram outros acontecimentos que os estudiosos do período conhecido como Renascimento ou “Início da era moderna” costumam destacar como transformações que caracterizaram o momento histórico na Europa. A invenção da imprensa, por exemplo, proporcionou a disseminação do conhecimento e de notícias, e, consequentemente, a autonomia de pessoas que antes dependiam daqueles que possuíam acesso aos originais. Outros dois fatores decisivos na transição entre a Idade Média e a modernidade foram a nova organização política do poder, com a formação dos Estados absolutistas e a reforma. Esses dois fatores romperam com a antiga organização social e com antigas formas de poder, colocando o indivíduo em evidência ao exaltar a figura de um Rei ao e descentralizar a comunicação com o divino, dando às pessoas a possibilidade de fazerem isso por si mesmas. Além disso, o humanismo, que pode ser caracterizado como uma nova atitude em relação à antiguidade clássica, retomando seus conhecimentos e seus valores como a valorização do ser humano, também costuma ser apontado como relevante na transição entre a Idade Média e a Era Moderna.
Mas será que esses acontecimentos realmente representaram uma ruptura com a Idade Média como se costuma dizer? Será que houve outros fatores que marcaram ou proporcionaram uma mudança de atitude do homem e de organização da sociedade europeia em geral?  Porque será que, no senso comum, o período conhecido como Renascimento é tão fortemente associado a uma ruptura completa com a Idade Média em direção à modernidade, com a Itália e com um grande desenvolvimento cultural? Será que é assim mesmo? Será que não há nada além disso?
Muito do que se diz sobre o Renascimento até hoje está relacionado de alguma forma com o trabalho do historiador suíço especializado em arte e cultura Jacob Burckhardt (1818-1879), que escreveu em 1860 um livro chamado A cultura do Renascimento na Itália (tradução de Sérgio Tellaroli, 1991). Esse livro é dividido em seis grandes capítulos: “O Estado como obra de arte”, “O desenvolvimento do indivíduo”, “O redespertar da antiguidade”, “O descobrimento do mundo e do homem”, “A sociabilidade e as festividades” e “Moral e religião”.  Ao longo desses capítulos, Burckhardt explora diversos fatos que considerou característicos do período, entre os quais os já citados Estados Absolutistas, o humanismo, as mudanças na relação das pessoas com a religião, o resgate dos valores da antiguidade clássica e principalmente o desenvolvimento artístico-cultural, focando especialmente nas esferas sociais da nobreza, do clero, da burguesia e dos artistas. Além disso, Burckhardt também apresentou em seu livro a ideia da “descoberta do indivíduo” no período do Renascimento, que continua sendo debatida até os dias atuais.
 Segundo Burckhardt,
“Na Idade Média, ambas as faces da consciência – aquela voltada para o mundo exterior e a outra, voltada para o interior do próprio homem – jaziam, sonhando ou em estado de semivigília, como que envoltas por um véu comum. De fé, de uma prevenção infantil e de ilusão tecera-se esse véu, através do qual se viam o mundo e a história com uma coloração extraordinária; o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas desse mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal.”[vi]

Para ele, esse é um fenômeno quase que exclusivamente italiano, que, “à mesma época, não tem paralelo no Norte, ou não se revela de maneira semelhante.”[vii] Assim, ao longo de seu livro, Burckhardt recorre a exemplos de artistas italianos canônicos, como Dante, por exemplo. Segundo ele, “o grandioso poema de Dante teria sido impossível em qualquer outra parte, simplesmente pelo fato de que o restante da Europa encontrava-se ainda sob aquele encanto da raça; para a Itália, o sublime poeta tornou-se, já pela plenitude de sua individualidade, o arauto nacional por excelência de seu tempo.”[viii]
Vemos, então, que a hipótese de Burckhardt sobre o Renascimento e a “descoberta do indivíduo” se refere principalmente à Itália e se baseia em seu cânone artístico e cultural. Essa hipótese serviu como ponto de partida para os estudos de diversos outros pesquisadores do Renascimento na atualidade. Em Inventing Sincerity, Refashioning Prudence : The Discovery of the Individual in Renaissance Europe (1997), o historiador estadunidense John Martin afirma que a tese de Burckhardt “continua a estimular o que há de mais criativo entre os estudos acadêmicos sobre o fim da Idade média e o início da história moderna da Europa.”[ix] Alguns desses estudos vieram a contribuir com a hipótese de Martin sobre a “ascensão do indivíduo”, enquanto outras vieram a acrescentar detalhes ou até mesmo refutá-la. Conforme afirma Martin, as ideias de Burckhardt têm sido alvo de críticas por analisarem a época como se houvesse uma homogeneidade social e cultural, de uma perspectiva elitista, além de considerar o indivíduo como algo externo e independente da história, de uma forma essencialista. Entretanto, como segue dizendo Martin, “modelos filosóficos, antropológicos e literários recentes do indivíduo transformaram nosso entendimento da pessoa humana de tal forma que não é mais possível basear nossa análise das origens do individualismo nas suposições humanísticas tradicionais que Burckhardt tomou como certas.”[x] Segundo Martin, alguns estudiosos se opõem, inclusive, à ideia da “ascensão do indivíduo”, preferindo focar seus estudos na experiência coletiva. Por isso, ele apresenta algumas visões alternativas à hipótese da “descoberta do indivíduo” do historiador suíço, levantadas por estudiosos do que veio a ser chamado de “Novo historicismo”, para os quais o individualismo seria não algo inerente ao ser humano, mas sim uma construção social.
Estudamos algumas dessas teorias e as discutiremos com mais detalhes em breve. Uma das teorias que abordaremos é a de Thomas Greene, que em 1968 escreveu “The Flexibility of the Self in Renaissance Literature. Nesse texto, Greene aborda a questão da flexibilidade da capacidade do ser humano de moldar o seu “eu” como uma característica do período do Renascimento. Outra teoria alternativa à hipótese de Burckhardt sobre a “descoberta do indivíduo” é a do “Renaissance self-fashioning”, do historiador literário estadunidense Stephen Greenblatt, proposta em seu livro de mesmo nome, de 1980. Para Greenblatt, existiu no Renascimento a possibilidade do homem de modelar a sua personalidade, mas esse ato não era completamente livre, uma vez que existiam poderes como o Estado e  Igreja que controlavam a autonomia das pessoas. Estudaremos também a proposta do próprio John Martin em Inventing Sincerity, Refashioning Prudence : The Discovery of the Individual in Renaissance Europe , de 1997, texto no qual ele fala sobre como a mudança dos conceitos de sinceridade e prudência influenciaram a individualização do homem no Renascimento. Para observar tais conceitos de acordo com a proposta de Martin, discutiremos o poema My Mind to Me a Kingdom Is, de Sir Edward Dyer, poeta inglês do século XVI.




[i] No original em inglês “the period of European history between the 14th and 17th centuries when there was a new interest in science and in ancient art and literature especially in Italy”. Disponível em <http://www.merriam-webster.com/dictionary/renaissance>, acesso em 21/11/2016.
[ii] No original em ingles “creating new perspectives for various kinds of intellectual, cultural and social history”. (CAVE, 2006, p. 12). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[iii] No original em inglês “a construction of elite culture rather than a global historical phenomenon”. (CAVE, 2006, p. 12). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[iv] No original em inglês “historical perspectives which may be considered as programmatically egalitarian”. (CAVE, 2006, p. 12). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[v] No original em inglês “To investigate the early modern period is to enquire after the roots, the ostensible origins, of our own ‘modernity’, and thus to subject modern ideologies, via a historical loop, to a radical critique”. (CAVE, 2006, p. 13). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[vi] BURCKHARD, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P. 145
[vii] BURCKHARD, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P. 146
[viii] BURCKHARD, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P. 146
[ix] No original em inglês “[…] Continues to stimulate much of the most creative scholarship in late medieval and early modern European history.” (MARTIN, 2000, p. 12).
[x] No original em inglês “recent philosophiical, anthropological and literary models of the individual have so transformed our understanding of the human person that it is no longer possible to base our analysis of the origins of the individualism on the traditional humanistic assumptions that Burckhardt take as given” (MARTIN, 2000, p. 12).