As
questões que giram em torno da consciência do indivíduo são recorrentes em
discussões atuais. Afinal, como podemos definir a palavra “indivíduo”? Segundo
o dicionário Houaiss, o indivíduo pode ser pensado como alguém em relação a uma
coletividade. A subjetividade, por sua vez, é definida como algo do sujeito,
pessoal; que não é concreto, exato ou objetivo. Pensando nessas duas
definições, reflexões podem ser levantadas: como essas questões permeiam a
consciência do indivíduo? Qual o lugar da subjetividade dentro da coletividade,
pensando na noção do eu?
O
caráter permanente desse questionamento pode ser visto como sendo universal.
Entretanto, com diferentes entendimentos de indivíduos em diferentes
sociedades, tais questionamentos partem de premissas diferentes, resultando em estudos
diferentes. Além disso, podemos inferir que esse caráter seja também atemporal,
nos permitindo pensar sobre eles por meio de uma perspectiva diacrônica, com
uma reflexão que vai desde as primeiras análises sobre o indivíduo e a
subjetividade. Para melhor entendermos a historicização da noção de indivíduo,
conduzimos a reflexão ao Renascimento, período no qual categorias morais foram
repensadas. Focamos, então, em John Martin e em seu ensaio “Inventing
Sincerity, Refashioning Prudence: The Discovery of the Individual in
Renaissance Europe”. Em seu texto, Martin visa destacar a descoberta do
indivíduo, e para tal examina os conceitos morais de sinceridade e prudência.
O
ensaio visa ressaltar a importância da descoberta do indivíduo não apenas pela perspectiva
da alta cultura – arte, música, literatura e história intelectual –, que era o
foco de Burckhardt, mas também pelo entendimento da história social e política.
Para observar a Renaissance
self-fashioning, Martin faz uma análise que destaca a formação histórica
dos Reinassances selves, com o
objetivo de redefinir as categorias morais referentes à sinceridade e à
prudência. Martin destaca que é importante analisar a mudança das noções
medievais para as noções renascentistas com relação do inner self para entender o que se tornou a consciência do indivíduo
renascentista e o novo sentido da noção de eu. Dois conceitos são analisados: o
Renaissance fashioning da virtude da
prudência e a emergência do ideal de sinceridade.
Em seu ensaio, Martin discute que prudência,
do latim providere (“prever”),
segundo Aristóteles, é a razão prática que guia a escolha no processo ético de
tomada de decisões. Na Idade Média, era vista como sabedoria cristã. De acordo
com Tomás de Aquino, a prudência é um princípio de ordem, considerada a virtude
mais necessária para a vida humana. Não importa apenas o que o homem faz, mas
também como ele faz: deve ser uma escolha certa, e não um impulso. No início do
século XIX, Maquiavel rompe a ligação entre os ideais de prudência e ética. A
ênfase na deliberação e a separação entre prudência e ética coloca novo foco na
subjetividade humana.
A
sinceridade, por sua vez, possui muitos significados. Antes do Renascimento,
era vista como algo puro ou inalterado. Tornou-se uma categoria moral a partir
do século XIX, a partir de um ímpeto moral crescente para tornar sentimentos e
convicções conhecidas. A sinceridade passou a ser descrita como a relação entre
a percepção dos homens e mulheres de seus internal
selves (pensamentos, sentimentos e convicções) e o mundo mais amplo.
Ao
revisitar a discussão de sinceridade quanto na discussão de prudência, Martin
analisa um novo entendimento do ser humano. Destacam-se autores como Lutero e Michel
de Montaigne. Para exemplificar, podemos mencionar uma consideração de
Montaigne sobre prudência feita em seu livro Ensaios, em que há um conflito entre a sinceridade do eu, o que o
sujeito gostaria de fazer; e a prudência, que de algum modo impede a projeção
completa de sua subjetividade perante a sociedade:
“A própria
essência da minha forma é a comunicação, é a manifestação: sou todo
extrovertido e em evidência, nascido para a companhia e a amizade. A solidão
que amo e que prego é, principalmente, trazer para mim minhas afeições e meus
pensamentos: restringir e estreitar, não meus passos, mas meus desejos e minhas
preocupações, recusando a solicitude externa e fugindo mortalmente da servidão
e da obrigação, e não tanto da multidão dos homens como da multidão dos
negócios. Para falar a verdade, meu isolamento mais me estende e me expande
para fora: com mais gosto me atiro nos negócios do Estado e no universo quando
estou sozinho. No Louvre e na multidão me fecho e me contraio dentro de minha
pele. A multidão impele-me a entrar em mim. E jamais converso comigo mesmo mais
loucamente, mais licenciosa e privadamente que nos lugares de respeito e prudência
cerimoniosa. Nossas loucuras não me fazem rir, mas sim nossas sapiências. Meu
temperamento não me torna inimigo da agitação das cortes:aí passei parte da
vida, e fui feito para portar-me alegremente com os grandes grupos, contanto
que seja por intervalos, e na minha hora. Mas esse frouxo julgamento de que
falo força-me à solidão.” (p. 255)
A
consciência do indivíduo foi, em grande escala, o resultado de mudanças
fundamentais nas visões de ética dos humanistas renascentistas e os reformistas
protestantes. A partir de um fashioning de
identidades religiosas, pessoais e sociais, era possível, segundo Lutero,
delinear duas virtudes de sinceridade e prudência distintas no discurso
renascentista, com negociações no dia-a-dia sobre qual papel deveria ser
exercido.
Martin
discute que o indivíduo passou a projetar uma representação fiel da sua
subjetividade, levando em consideração seus sentimentos, preocupações e
crenças. Ao mesmo tempo, a representação do indivíduo diante da corte e da
sociedade representava também o inner
self, uma vez que homens e mulheres precisavam negociar seus papéis
sociais. Portanto, a noção de indivíduo torna-se única e complexa. Montaigne
argumentou ainda em favor de uma coexistência dessas virtudes, mas se teria
assim uma impossibilidade de um discurso sincero, pois havia um protocolo a ser
seguido que impediria uma projeção completa da subjetividade, conforme o
exemplo acima. É importante notar que, mesmo sendo uma reflexão sobre um
período renascentista, as questões são bastante atuais. Ao pensarmos na
sociedade atual, acreditamos que seja de extrema importância o levantamento da
discussão da sinceridade e da prudência.
Podemos
perceber e discutir os conceitos de sinceridade e prudência em My Mind to Me a
Kingdom Is, de Sir Edward Dyer:
MY mind to me a kingdom is;
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Such present joys therein I find,
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That it excels all other bliss
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That earth affords or grows by kind:
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Though much I want that most would have,
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Yet still my mind forbids to crave.
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No princely pomp, no wealthy store,
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No force to win the victory,
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No wily wit to salve a sore,
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No shape to feed a loving eye;
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To none of these I yield as thrall;
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For why? my mind doth serve for all.
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I see how plenty surfeits oft,
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And hasty climbers soon do fall;
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I see that those which are aloft
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Mishap doth threaten most of all:
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They get with toil, they keep with fear:
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Such cares my mind could never bear.
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Content I live, this is my stay;
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I seek no more than may suffice;
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I press to bear no haughty sway;
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Look, what I lack my mind supplies.
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Lo, thus I triumph like a king,
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Content with that my mind doth bring.
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Some have too much, yet still do crave;
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I little have, and seek no more.
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They are but poor, though much they have,
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And I am rich with little store;
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They poor, I rich; they beg, I give;
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They lack, I leave; they pine, I live.
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I laugh not at another’s loss,
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I grudge not at another’s gain;
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No worldly waves my mind can toss;
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My state at one doth still remain:
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I fear
no foe, I fawn no friend;
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I loathe not life, nor dread my end.
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Some weigh their pleasure by their lust,
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Their wisdom by their rage of will;
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Their treasure is their only trust,
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A cloakèd craft their store of skill;
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But all the pleasure that I find
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Is to maintain a quiet mind.
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My wealth is health and perfect ease,
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My conscience clear my chief defence;
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I neither seek by bribes to please,
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Nor by deceit to breed offence:
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Thus do I live; thus will I die;
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Would all did so as well as I!
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Glossário:
Bliss:
bem-aventurança
Thrall: prisioneiro
Surfeit:
excesso Hasty:
apressado
Mishap
contratempo
Toil: trabalho
Haughty:
arrogante
Ao
longo de todo o poema, percebemos uma distinção entre tais questões. Por um
lado, encontramos a voz do falante, que percorre todo o poema afirmando que ser
consciente de si mesmo é o suficiente para ele. O falante se vê rico em
conhecimento, e só busca o mesmo. É em si mesmo que o falante encontra
felicidade, como podemos perceber em “My mind to me a kingdom is;/ Such
presente joys therein I find,/ That it excels all ohter bliss” e em “Content I
live, this is my stay”. Logo em seguida, temos “ I seek no more than may
suffice”, em que há uma forte tensão entre a sinceridade e a prudência. De
acordo com o falante, qual seria o propósito de uma busca a felicidade no mundo
exterior se já a encontra dentro de si? Portanto, temos uma impossibilidade da
prudência em prol de uma sinceridade completa.
Por outro lado, vemos os outros membros da
sociedade sendo representados como pessoas que prezam luxúria e riqueza material.
Tais riquezas, portanto, os colocariam como membros respeitosos na sociedade.
Entretanto, o falante os aponta como membros pobres, já que não buscam uma
clareza de si mesmos. É possível perceber tal diferença entre os indivíduos em:
“Some have too much, yet still do crave;
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I little have, and seek no more.
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They are but poor, though much they have,
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And I am rich with little store;
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They poor, I rich; they
beg, I give;
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They lack, I leave; they
pine, I live.”
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O
falante, ao se referir aos outros indivíduos da sociedade, os enxerga como
indivíduos não completos, uma vez que buscam uma ascensão social. Portanto
percebemos, segundo o poema, que a ganância para se encaixar nos moldes da
sociedade bloqueia a possibilidade de uma sinceridade completa. A tensão entre
prudência e sinceridade, dessa forma, permeia durante todo o poema.
Mesmo
com todo o embate dos conceitos de sinceridade e prudência ao longo do poema,
também podemos nos perguntar se o falante se apresenta como um indivíduo único
mesmo. Apesar de se dizer consciente de si mesmo, o falante não vai além de tal
afirmação, e pode acabar seguindo uma linha de senso comum. Se assim o faz,
poderia estar se afastando mais da sinceridade do que percebemos em uma
primeira leitura. Todo esse questionamento, dessa forma, nos indica que o
conceito de indivíduo não é resolvido.
Os
ideais de prudência e sinceridade e a tensão entre eles tornou possível a
percepção do ser humano como um indivíduo complexo e auto-consciente. Tal
percepção traz, dentre outros, os questionamentos levantados no início: como
podemos enxergar um indivíduo na sociedade atual? Com a tecnologia disponível e
o conhecimento que essa traz na sociedade do século XXI, estaríamos nós cientes
da nossa própria consciência? Se sim, nos encontramos a caminho de um maior
encontro com a sinceridade. Mas o que nos afasta de tal clareza? Nesse caso,
nos encaminhamos para uma construção de identidade dentro do conceito de
prudência. Percebemos, desta maneira, que essas são perguntas atemporais e
sempre atuais. Podemos enxergar tal dilema também através
das construções sociais. Como podemos ter uma noção de indivíduo se estamos
sempre nos colocando dentro de categorias sociais? Ao sermos sinceros, seremos
aceitos em sociedade? Como lidar com as virtudes e os sentimentos? É preciso
discutir, portanto, se existe a noção do indivíduo dentro da sociedade no mundo
atual, uma vez que essa noção é condição para a sinceridade, que, por sua vez,
é refreada pela prudência.