terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Automodelagem e flexibilidade do indivíduo

Publicado pela primeira vez em 1980, o estudo de Stephen Greenblatt, Renaissance Self-Fashioning: From more to Shakespeare, foi uma grande contribuição para a concepção acerca do indivíduo renascentista. Dividido em seis capítulos [1], Greenblatt, em seu estudo, se posiciona contra teorias que negam a relação entre obra e vida social e também que esta última é livre de interpretação, se utilizando de exemplos como More, Wyatt, Spenser e Marlowe.
Primeiramente, o autor trata a questão da autonomia na automodelagem do indivíduo (em sua self-fashioning, como coloca) como uma falsa sensação de liberdade. Diferentemente de como Burckhardt afirma que a individualidade é inerente ao homem e livre de fatores externos, Greenblatt diz que não há, propriamente, tal autonomia: ela é, na verdade, controlada por poderes maiores de influência, como a soberania do Estado e a Igreja, principalmente considerando o período de Reforma e Contrarreforma. O poder de obrigar o indivíduo a modelar-se em certos padrões é uma questão de ter poder sobre a identidade, seja a própria ou a do outro.
O século XVI, no que diz respeito à identidade do indivíduo, é marcado por uma crescente autoconsciência na formação da identidade como um processo manipulável e artificioso. Há, no início dos tempos, uma mudança nas estruturas intelectuais, sociais, psicológicas e estéticas que governam a produção de identidades [2], ocasionando uma crise do sujeito como condição individual.
A essa consciência individual soma-se a consciência da palavra, uma vez que a língua é uma construção coletiva e, logo, obra literária e vida social são influências mútuas (Greenblatt, p. 5); há também a consciência da arte, já que, como uma forma de manifestação da atividade humana, a arte também se relaciona à vida social. O livro de Baldassare Castiglione, The book of the courtier (1528), exemplifica como, através das palavras de um escritor, surgem certos padrões a serem seguidos, padrões “apropriados” para o cortesão ideal, “que, sob o [...] ponto de vista [de Castiglione], é a forma de cortesia mais apropriada para um cavalheiro que vive na Corte da princesa, na qual ele terá o conhecimento e habilidade de servi-la em qualquer coisa razoável, ganhando seus favores e o louvor dos outros” (p. 39, tradução própria). A partir do momento em que se descreve um modelo padrão e que ganha recorrência, esse modelo passa a ser aquele que deve ser espelhado, suscitando assim uma forma indireta de imposição da identidade.
Em seu livro, Castiglione narra uma história dentro da Corte, cujos membros resolvem fazer um jogo, que acaba sendo “retratar em palavras um perfeito cortesão, explicando o personagem e as qualidades particulares necessárias a qualquer um que mereça tal título” (p. 51, tradução própria). Os personagens discutem a natureza de um perfeito cortesão, como a sua nobreza, a primeira impressão que ele deve suscitar, seu modo de portar-se, sua beleza e elegância, modo de falar, entre outras coisas.
Robert Dudley, 1st Earl of Leicester, autor desconhecido (datado de aprox. 1575)

É também no século XVI que fashion passa a ser uma palavra de grande circulação e começa a ser usada como um modo de formar o indivíduo. Essa formação é entendida, como afirma Greenblatt, tanto como uma imposição física sobre uma pessoa quanto uma delineação menos aparente, encontrada em um determinado modo de pensar e comportar-se. A pintura acima foi retirada do National Portrait Gallery não só como um exemplo da arte como representação de um indivíduo (no que permanece a pergunta: seria a arte a representação de um indivíduo em sua individualidade? Ou seria ela a representação de um tipo de indivíduo, uma classe, uma sociedade mais do que a um indivíduo em sua particularidade?), mas (relacionando ao The book of the courtier) como a representação de um cortesão, e além do mais, como um exemplo de imposição física.
Se observarmos a pintura, o personagem sendo retratado é um conde, membro da Corte Real – um cortesão. Ele se traja com vestes reais, tem o rosto sóbrio e a postura ereta, com uma das mãos no quadril [3], representando sua elegância em portar-se (também uma forma de imposição) e a outra na espada, que, conforme Castiglione, a certa altura, sinaliza: “a primeira e verdadeira profissão do cortesão deve ser a das armas” (p. 57) e:
Assim como, uma vez que manchada, a reputação da pureza de uma mulher nunca pode ser restaurada, então também a reputação de um cavalheiro de armas é manchada pela covardia ou outro comportamento reprovável, mesmo que apenas uma vez, vai sempre permanecer suja pelos olhos do mundo e coberta com ignomínia. (p. 57, tradução própria)



O texto de Thomas Greene tem como objetivo falar da liberdade e autodeterminação [presentes] na literatura do Renascimento. Através da voz de Pico dela Miranda – um filósofo humanista do Renascimento Italiano –, Greene nos traz um esclarecimento do quão diferentes são os seres humanos das outras criaturas de Deus. Adão é descrito como alguém que pode “esculpir a própria imagem”.
É, também, importante ressaltar que a doutrina da indeterminação da natureza do homem choca-se com a doutrina que defende que natureza humana é inalterável. Esta última doutrina é a comum a Aristóteles e os Escolásticos.

“Flexibilidade” está, basicamente, ligado à ideia de ser capaz de “esculpir” sua “própria imagem”, a possibilidade de reconfigurar seu próprio eu.


[1] À parte os comentários iniciais, notas, introdução e epílogo, o livro é dividido respectivamente nos seguintes capítulos: “At the Table of the Great: More’s Self-Fashioning and Self-Cancellation”, “The Word of God in the Age of Mechanical Reproduction”, “Power, Sexuality, and Inwardness in Wyatt’s Poetry”, “To Fashion a Gentleman: Spenser and the Destruction of the Bower of Bliss”, “Marlowe and the Will to Absolute Play” e “The Improvisation of Power”
[2] GREENBLATT, S. Renaissance self-fashioning: from more to Shakespeare. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1980.
[3] Para mais leituras há a seção do The Metropolitan Museum of Art sobre retratos do período Renascentista e Barroco: http://www.metmuseum.org/toah/hd/port/hd_port.htm

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